Sunday, March 4, 2012

Thugs: vítimas ou agentes da violência?*

Os vários acontecimentos de índole criminal (re)surgidos no final do ano passado e início deste ano, na Praia e no Mindelo, trouxeram a debate um problema que se pensou ultrapassado. O fenómeno da violência urbana, tornado problema social em meados dos anos 2000, em parte, devido ao surgimento de uma nova figura social juvenil – os thugs, ou melhor, a redefinição de um movimento associativo juvenil informal associado a actos delinquentes, ao que parece, não obstante o júbilo institucional resultante de algumas respostas repressivas, voltou à agenda governamental e da esfera pública.

Desta feita, apresento algumas ideias-chave resultantes de uma investigação etnográfica independente iniciada no ano 2006 na Cidade da Praia, e apresentada em Bissau no dia 07 de Dezembro de 2009, a convite de uma equipa de investigadores do CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra), a propósito do projecto de investigação “Trajectórias de disseminação e contenção da violência: um estudo comparativo entre Bissau e Praia.”

1. Determinantes estruturais

Partindo do princípio que vivemos num espaço social marcado por constrangimentos naturais (insularidade e condições naturais adversas) e sociais (pobreza e desigualdade social), em que os grupos dominantes apropriam-se dos dispositivos reprodutores de poder, numa clara tentativa de os conservar, os grupos dominados, cedo são confrontados com um sistema de acção que lhes são impostas, deixando no entanto, margens de manobras que serão aproveitadas na elaboração de estratégias de sobrevivência que melhor se adequam à situação em que se encontram.


2. Possíveis desencadeadores da violência nos jovens na cidade da Praia

Falamos de um segmento de população desafiliado ou em processo de desafiliação (da escola, da família, do trabalho e do todo social), exposto a uma série de situações discriminatórias, em parte, por habitarem bairros estigmatizados e criminalizados;


Inseridos numa sociedade culturalmente violenta, quer seja dentro da própria família (violência doméstica, irresponsabilidade paternal, precariedade de habitação) quer seja na rua (contra grupos rivais e/ou contra a polícia – Piquete, BAC e PM);

Acantonados na periferia emergente ou em bairros onde se notam descontinuidades nos padrões de ocupação espacial, resultantes do processo de urbanização acelerado e desordenado que assolou a capital do país, em maior escala nos anos 90;


Sujeitos a mudanças sociais bruscas que provocaram uma certa instabilidade nas relações sociais, tendo em conta que, durante bastante tempo a instância religiosa dominante soube conter os jovens através da ideologia religiosa interiorizada nos espaços reprodutores de fé (catequese, reuniões de jovens, eucaristias), fornecendo-lhes vínculos sociais, vínculos esses quebrados com a independência do país, onde surge a necessidade de afirmação do Estado-nação e do fortalecimento de laços de identidade, através de endoutrinamento político, a partir de organizações de massa, tais como a OPADCV e a JAACCV, a descolectivização social desencadeada pela democratização do país criou, inconscientemente, um certo vazio institucional, superado pelo reinventar dos jovens de novas formas de sociabilidade juvenil informal.


Sendo assim, na ausência de uma figura autoritária no espaço social e na família (pais, avós, outros familiares), os grupos de pares surgem como agentes de referência das crianças e dos adolescentes, consolidando as culturas juvenis marcadas por um conjunto de crenças, valores, símbolos, normas e práticas específicas compartilhados entre si, onde os valores do gangster rap são importados e incorporados no quotidiano juvenil urbano desafiliado, transformando-os em tribos urbanas, numa sociedade contemporânea neotribalizada.


3. Delinquência como modo de vida (Crianças, adolescentes e jovens associados a grupos delinquentes – thugs)

Devido à exclusão em que se sentem submetidos, esses jovens tendem a interiorizar apenas as normas da subcultura onde crescem, ficando livres de qualquer compromisso para com a sociedade convencional. Portanto, não se revêem nos valores do grupo dominante, acabando por eleger os representantes dessa classe (políticos, polícias e agentes providos de capital) e os seus patrimónios como inimigos.


Estando mal integrados, a opção por uma carreira delinquente surge naturalmente e se processa através da manutenção, durante um longo período de tempo, de uma forma determinada de delinquência, fazendo dela o seu modo de vida.


Claramente, são as desigualdades sociais que geram pressões e desvantagens susceptíveis de conduzirem a esse modo de vida, uma vez que, quanto maior forem as oportunidades legais para chegar a um determinado fim, menor serão as tendências de se escolher actividades delinquentes, e quanto maior forem as oportunidades criminais, num contexto socialmente desigual, maior se tenderá a optar por essa prática.


Conhecem as regras da sociedade e agem de forma consciente, produzindo justificações ou técnicas de neutralização das normas convencionais, isto porque, ao admitirem que os seus actos prejudicam outrem, consideram esse prejuízo como uma represália devido à sua situação social, e portanto, esses actos não são mais do que uma justa reposição das coisas. Na verdade, as técnicas de neutralização são utilizadas como forma de suavizar os seus comportamentos.


Quanto mais sólido é o grupo, mais os interesses colectivos se sobrepõem aos interesses individuais, levando esses indivíduos, na maior parte das vezes a sacrificarem-se pelo grupo. Essa associação informal funciona como uma academia do crime, uma vez que, pertencendo a um grupo organizado e institucionalizado, os seus membros aprendem a contornar as dificuldades e adquirem um sistema de justificação que os incitam a continuar, considerando os seus estilos de vida como melhor do que o dos agentes pertencentes à mesma realidade social.


A associação a uma tribo urbana acarreta a incorporação de um determinado estilo (reproduzindo uma informação social de thug), uma vez que, há um interesse numa auto-apresentação performativa (todos os grupos auto-denominados thugs possuem pelo menos um rapper); há um cuidado com a auto-imagem (calças e t-shirts largas, fios e brincos volumosos, lenços e/ou bonés, tatuagens, etc.); há uma preocupação com o porte (utilização do corpo como um lugar de identidade, de expressão e causador de medo); uso frequente do calão (crioulização de expressões do quotidiano urbano americano) e a adopção de condutas de agressão e destruição com efeitos dramáticos sobre si mesmos e sobre a sociedade.


Constata-se que as associações informais especialistas em delinquência urbana na capital do país, auto-intitulados thugs, comportam crianças, adolescentes e jovens com elevada taxa de insucesso escolar, com pouca ou nenhuma vigilância familiar ou comunitária, interessados em práticas delinquentes (assalto à mão armada a pessoas e/ou residências/espaços comerciais, vandalismo, pequenos tráficos de drogas e armas, e também, lutas contra gangs rivais pelo domínio territorial em quase todos os bairros da capital), possuindo normalmente, nomes em inglês, e constituídos em média por 14 elementos.


Não se pode falar de forma rigorosa numa hierarquia de grupo, mas nos casos em que tal existe, os critérios de hierarquização são a idade, a agressividade, a bravura, a experiência delinquente, a quantidade de lutas travadas, as marcas e os despojos de guerra e, como é evidente, um cadastro policial.


4. Os tipos de violência/delinquência observados

Violência como defesa, na medida em que se ataca com o objectivo de proteger-se ou prevenir-se de um ataque futuro, ou por vingança, como forma de reparar um mal causado anteriormente. A violência surge por um lado, como uma resposta à situação social em que se encontram, isto porque, não se sentem integrados socialmente ou não se sentem compreendidos e aceites por uma sociedade que, no seu entender, os quer reprimir (imitação literal dos comportamentos dos jovens desafiliados dos lugares centrais da esfera mundial), e por outro lado, contra grupos rivais de outras ruas e/ou bairros vizinhos (por controlo de espaços de pequenos tráficos de drogas e/ou armas – esquinas dos bairros, escolas secundárias e algumas feiras), marcados por rivalidades históricas (introdução de armas brancas e de fogo nesses confrontos);


Violência gratuita ou como lazer, uma vez que os actos delinquentes surgem por simples prazer, ou seja, com a finalidade de sentir a sensação de viver intensamente. Permite criar um espaço cultural necessário à afirmação de uma identidade social (discrepância entre identidade virtual, social e real);


Violência como forma de legitimação de poder, em que o acto delinquente surge como forma de dominação (pelo prazer de atacar o outro, com a finalidade de o dominar, de o fazer sofrer e de sustentar admiração);


Violência como factor de moda, onde se reproduz as identidades culturais masculinas – ser matxu (apreciadas por uma certa facção da população juvenil feminina) importadas do universo hip hop de consumo e valorização social de estilos de vida alternativos ligados à droga, ao álcool, a actos de vandalismos, etc.;


Violência como forma de obter dinheiro, isto porque, inseridos numa sociedade de consumo, onde o sucesso social é associado ao dinheiro, a ênfase está na apropriação do mesmo, O lucro, normalmente, vai para a compra de alguma tecnologia, armas utilizadas na defesa pessoal e dos territórios, drogas, bebidas alcoólicas e “jogo da batota”.


5. Reflexão final/algumas recomendações

Verifica-se que as respostas dadas a esses actos estão suportadas por teorias normativas e etnocêntricas, fazendo com que as políticas sejam excessivamente repressivas, o que acaba por reproduzir sentimentos de revolta nesses jovens. Também, nota-se uma tendência em criminalizar a pobreza, a partir do encarceramento imediato de determinados agentes em detrimento de outros.


Constata-se que os jovens são ao mesmo tempo vítimas e agentes da violência, na medida em que o poder político, ao posicionar-se como o principal reprodutor e utilizador da violência, não resta a essa camada alternativas a não ser responder de forma violenta.


É necessária uma maior cooperação política e social na luta contra o fenómeno e o deixar para segundo plano a tendência costumeira de politização e de culpabilização do fenómeno, investindo em políticas públicas/sociais, onde os jovens e as associações juvenis são tratados como portadores da agencialidade e não como um corpo social indisciplinado, irresponsável e perigoso, logo, a ter de ser controlado pelo sistema e sujeitos a endoutrinamentos vários.


Lutar de forma eficaz contra a desigualdade social, despido de qualquer tipo de preconceito partidário e bairrista, e contra o estado de impunidade, sobretudo, no seio da camada dominante.

Mudar as actuais políticas de urbanização, uma vez que, aquartelando a classe dominante em bairros distintos (guetização), está-se, inconscientemente, a importar a realidade brasileira – casa grande/senzala – e incentivando, o surgimento de formas de delinquência cada vez mais aprimoradas e violentas.


Por fim, apostar na investigação e incentivar as nossas universidades a fazer do espaço social cabo-verdiano um laboratório social, onde se busca soluções locais para os problemas que vão surgindo.


*Resumo de artigo científico em construção publicado no Jornal A Nação nº 129 do dia 18/02/10

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